O abuso de álcool e outras drogas e as audiências de custódia

  • Mário Sérgio Sobrinho
  • 01 Dez 2020
  • 19:47h

(Foto: Divulgação)

O abuso de álcool e outras drogas é um complexo e frequente problema de saúde, cujos efeitos vão além daquele que abusa dessas substâncias, alcançando o sistema de saúde, as famílias e a sociedade em geral, tanto que, no ano de 2012, o 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II LENAD) apontou ser o álcool a droga que "contribui com cerca de 10% para a toda a carga de doença no Brasil" e aquela "que mais gera violência familiar e urbana" [1]. Esse mesmo levantamento apontou a maconha como a droga ilícita de maior consumo, tanto que 6,8% da população adulta e 4,3% da população adolescente declarou à época já ter feito uso dela ao menos uma vez na vida. Com relação à cocaína, outra droga ilícita de grande prevalência, o uso, ao menos uma vez na vida, foi apontado pelo II LENAD atingir 3,8% dos adultos e 2,3% dos adolescentes e, em relação ao crack, relatou-se o uso durante a vida por 1,3% dos adultos e 0,8% dos jovens.

Existem, também, as drogas produzidas em laboratório, que ganham espaço no mundo e chegaram ao Brasil, sendo uma dessas drogas o K2 ou K4, cuja notícia da sua primeira apreensão, em 2017, gerou preocupação aos gestores do sistema prisional paulista [2], especialmente porque o tamanho reduzidíssimo de cada dose dessa droga facilita sua entrada indevida nos estabelecimentos penais. Umberto Luiz Borges D’Urso, presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo, apontou estar o K4 se difundindo "(...) no cenário nacional e, por conseguinte, no sistema prisional" e se tratar "(...) de uma espécie de maconha produzida em laboratório, 100 vezes mais forte que a comum" [3].

Como diversos outros problemas de saúde, o quadro de abuso ou de dependência ao álcool e outras drogas se instala independentemente da condição social ou econômica da pessoa envolvida com essas substâncias. Entretanto, do mesmo modo que ocorre com outras doenças, um passo essencial para seu enfrentamento é a própria pessoa que suporta essa situação aceitar ajuda, usando recursos e estratégias disponíveis para reduzir os impactos dos efeitos da substância sobre ela própria que, no caso do abuso e da dependência ao álcool e outras drogas, ganha dimensão ampliada porque o desequilíbrio resultado do abuso ou da dependência, por vezes, ultrapassa a esfera individual.

Observado esse cenário, justificável confrontar o assunto abuso de álcool e outras drogas ao tema relacionado às audiências de custódia, bastando lembrar os episódios da prática de crime patrimonial sem violência cometido por agente com inescondível finalidade de obter recursos para consumir drogas e, também, o comportamento descontrolado e violento caracterizador de certos crimes nos quais, por vezes, o infrator descreve o uso abusivo de alguma dessas substâncias como coadjuvante do desequilíbrio estimulador do delito.

Aqueles que atuam no campo da segurança pública ou lidam com a prática judiciária criminal não raramente recebem notícias de idosos que lhes pedem ajuda por sofrerem violência física, moral ou, ainda, ataque patrimonial indevido e repetido dentro de suas próprias casas, atribuindo a autoria dessas condutas a determinado familiar que abusa de álcool e outras drogas. Não foi sem razão que os artigos 43 a 45 da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) autorizam, entre as medidas de proteção, sempre que houver ameaça ou violação aos direitos reconhecidos ou violados por abuso da família, incluir usuários ou dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, que convivam com idosos e lhes causem perturbação, em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento.

Considerada a difusão do álcool e das drogas na sociedade, seu impacto na saúde individual e pública, sua propagação aos locais cujo acesso é vedado, como presídios, e, também, seu efeito negativo na harmonia das famílias, com destaque para aquelas cujos membros idosos, por vezes, são vítimas de crimes impulsionados por comportamentos descontrolados de familiar abusador dessas substâncias, é imaginável que os sistemas de segurança pública e de Justiça sejam pressionados por essa situação e, sem abrir mão de cumprir e aplicar a lei, podem ampliar o repertório e dar respostas coerentes aos infratores abusadores de álcool e outras drogas.

Tornando mais clara essa ideia, a crise gerada por alguém que abusa ou dependa de álcool e outras drogas se amplia quando essa pessoa é apontada como autora de infração penal e, em razão disso, acabe presa. Nesse caso, o agente da área da segurança pública, ao constatar determinada prática infracional, e, a partir dele, os profissionais do sistema de Justiça são impactados pelo abuso ou dependência do álcool e outras drogas até então geralmente restrito ao campo familiar.

 

A partir da institucionalização das audiências de custódia em fevereiro de 2015, cuja finalidade ampla é controlar sob diversos aspectos a legalidade das prisões, a situação de abuso de álcool e outras drogas vivenciada pela pessoa apresentada, que frequentemente era antes notada pelos agentes da área da segurança passou a ser conhecida nesse ato, mais rápida e claramente, pelo juiz, pelo advogado ou defensor público e pelo promotor de Justiça.

Nessa audiência, que deve ocorrer no prazo máximo de até 24 horas após a realização da prisão, conforme previsão do artigo 310 do Código de Processo Penal, com redação da Lei 13.964/2019, pode surgir diante do juiz, advogado ou membro da defensoria pública e do Ministério Público, além das referências e das informações acerca do modo e das condições relativas à captura da pessoa e da legalidade da prisão, notícias de o indivíduo apresentado enfrentar sensíveis problemas relacionados ao abuso de álcool e outras drogas.

O envolvimento da pessoa encaminhada para participar de uma audiência de custódia com abuso de álcool e outras drogas pode ser conhecido pelos profissionais da área judicial que nela atuam por informações que a polícia fez inserir nos papéis ou documentos, tal como auto de prisão em flagrante, mas também, a partir do relato verbal espontâneo do próprio infrator ou, ainda, resultar de respeitoso diálogo cujo início pode ser sugerido pela análise do tipo, da natureza, do modo e do local da prática infracional.

Acerca disso, a Resolução 221, do último dia 11 de novembro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[4], ao dispor sobre a atuação do Ministério Público na audiência de custódia, incorpora as providências de investigação referentes ao Protocolo de Istambul, da Organização das Nações Unidas (ONU) e dá outras providências, indica ao promotor de Justiça que dela participar formular perguntas suplementares para verificar, entre outras situações, "histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar a hipótese de requerer encaminhamento assistencial e a concessão da liberdade provisória, com a imposição de medida cautelar, ou encaminhar o caso para o órgão do Ministério Público com atribuição para a curadoria de saúde".

Nesse ponto, a resolução do CNMP busca, portanto, despertar a atenção do promotor de Justiça para que essa condição individual do preso custodiado, isto é, eventual histórico de dependência química, seja debatida na audiência de custódia, enquanto lhe estimula serena indagação acerca da delicada questão. Além disso, caso seja necessário propor ou requerer alguma providência, é importante que o Ministério Público ofereça ao promotor de Justiça informações dos recursos disponíveis próximos da moradia do preso, contendo nome, endereço e forma de contato imediato com entidades, serviços, profissionais e voluntários que ajudem pessoas que usem de modo problemático álcool e outras drogas com estratégias de tratamento, acolhimento, recuperação, apoio, mútua ajuda e reinserção social.

Essa parte da previsão da Resolução 221/2020 encontra forte justificativa no impacto que o abuso e a dependência do álcool e outras drogas gera aos sistemas de saúde, social, segurança pública e Justiça, entre outros e também se alinha às normas extraídas dos artigos 26 e 47 da Lei 11.343/2006, nos quais é expressamente previsto que "o usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de segurança, têm garantidos os serviços de atenção à sua saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário" e que "na sentença condenatória, o juiz, com base em avaliação que ateste a necessidade de encaminhamento do agente para tratamento, realizada por profissional de saúde com competência específica na forma da lei, determinará que a tal se proceda, observado o disposto no artigo 26 desta Lei".

A propósito, a avaliação e eventual oferta de tratamento ao infrator já foi determinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em caso de crime de furto no qual o acusado admitiu ter trocado por drogas parte do produto do crime [5].

Em suma, as questões de saúde e sociais, atualmente muito debatidas em razão da pandemia da Covid-19, devem estar incluídas, quando pertinentes, nas variadas pautas trazidas para a discussão e o conhecimento dos operadores do sistema de Justiça e, no caso do abuso e da dependência de álcool e outras drogas, as articulações cabíveis na audiência de custódia são válidas para estimular o infrator a buscar cuidado e equilíbrio.

*Mário Sérgio Sobrinho

É procurador de Justiça do MP-SP e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).