Artigo: A decisão de Moraes e as maquinações políticas do STF

  • João Batista de Castro Júnior. Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.
  • 29 Abr 2020
  • 20:28h

Foto: Reprodução Google

A decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes – que perdeu objeto com a revogação administrativa da nomeação – era previsível, mesmo contrariando o entendimento de que o Judiciário não deve interferir em atos propriamente políticos, como declarou o STF com todas as letras na primeira ADPF que lhe bateu às portas, proposta pelo PCdoB numa questão comezinha, sem grande relevância nacional: o então Prefeito do Rio de Janeiro inconstitucionalmente não motivou o veto a uma lei que havia elevado o valor do IPTU para o exercício de 2.000. Os Ministros do STF foram uníssonos em rejeitar o pedido: “não podemos adentrar a motivação política”.

Para escapar agora dessa belíssima predicação constitucional, a decisão de Moraes lança mão do velho subterfúgio de sempre com aquelas platitudes teoricamente vagas sobre moralidade, socorrendo-se de trechos de decisões de colegas e de excertos de juristas conhecidos dentro e fora do País, chegando ao ponto até de apoiar-se na entrevista de despedida de Sérgio Moro do cargo de Ministro da Justiça, um indivíduo contra o qual pesa a mesma investigação aberta contra Bolsonaro.

A fim de entender bem por que essa decisão tem a coragem de inovar e contrariar o histórico da jurisprudência do STF sobre o assunto, é melhor começar deixando de lado aquele método, comum entre estudiosos e aprendizes de Direito Constitucional, que se funda na procura de algum padrão oculto estritamente jurídico nas dobras dos votos dos precedentes que parecem ser tão discordantes.

Isso é um tremendo equívoco téorico-metodológico, até porque opiniões e conceitos jurídicos são como luva de borracha, para a qual é difícil achar uma mão que ali não caiba. Em realidade, essas decisões têm que ser escrutinadas através de exercício metadogmático instrumentalizado por ferramentas da Sociologia Política e mesmo da Análise do Discurso, tornando-se então o caminho capaz de fazer aparecer, nessas horas, o real padrão oculto: o STF só vai até o ponto em que se dá conta de que não tem nada a perder com uma decisão que contrarie o humor político.

Quando há esse pano de fundo, a Suprema Corte brasileira se apresenta dotada de grande musculatura institucional e aí usa um ás na manga indiciado por Juvenal há séculos: ninguém manda nos guardiães judiciários e, portanto, eles podem fazer o que querem com aqueles votos cansativos, sem sal ático e até soporíferos entre seus próprios emissores.

Caso emblemático da história recente foi o inquérito aberto pelo próprio STF: não há previsão legal ou regimental para uma investigação desse tipo, porque o sistema acusatório diz que cabe ao Ministério Público tomar a iniciativa. Mas aí entrou outro busílis (esse termo é um tanto bacharelesco, mas vá lá): corre a suspeita do envolvimento de alguns procuradores na campanha difamatória virtual contra a Corte. Apavorados pelo risco de serem descobertos, teriam pressionado a então PGR Raquel Dodge a se insurgir contra essa anomalia investigatória.

Alexandre de Moraes dobrou a aposta e, mostrando quem manda, manteve o inquérito sem que o Ministério Público pudesse fazer coisa alguma, até que Augusto Aras chegou sinalizando não querer esse atrito. Ainda mais recentemente, Moraes criou outro monstrengo jurídico: em plena ebulição da saída de Valeixo e de Moro, determinou a permanência de dois delegados da Polícia Federal no mesmo inquérito, quando se sabe que de inamovibilidade só gozam juízes e membros do MP.

Com tal fisionomia jurídica instalada, quem poderia desfazer sandices judiciais como essas, inclusive a suspensão da nomeação do novo Diretor Geral da PF? Só o próprio pleno do STF, que ordinariamente, contudo, não é acionado quando há interesses ocultos e concordantes de grande monta em jogo, como no caso da longa e imoral permanência da decisão de Luiz Fux sobre auxílio-moradia destinado a juízes, procuradores e promotores, que expirou anos depois sem jamais ter sido levada a julgamento colegiado.

Eis, portanto, o que em síntese sumariza o jogo de poder do STF, pelas lentes da mais recente decisão de Alexandre de Moraes: o Sistema Nacional de Justiça, entendendo-se como tal Judiciário e Ministério Público, pode estar se tornando o ovo da serpente muito mais perigoso que qualquer uma das partes em litígio.  

Por Justiça, caveat lector, deve-se entender a cúpula do Judiciário, que está montada sobre um escalonamento afunilado que funciona como um anteparo cuidadosamente elaborado com tantos recursos e ações originárias previstos na legislação. Eles não existem por acaso, pois, quanto mais se sobe o degrau da hierarquia judiciária, menor a possibilidade de que, em situações de impacto político, haja uma decisão estritamente dentro dos trilhos constitucionais.  

Essa montagem atual da estrutura judiciária, com capacidade de grave interferência política, guia-se então na prática, repita-se, menos por respeito à Constituição do que por anabolização corporativa, o que é perigoso para a democracia por não estarem esses agentes sujeitos ao escrutínio da escolha popular.  Mas, sem resistência, estão avançando sobre as linhas divisórias do mapa constitucional brasileiro com esse mais novo e ousado plano: ajudar na renúncia ou o impeachment de Bolsonaro, com que Mourão assumiria o posto e entraria em cena, para as relações com o Judiciário, inclusive para nomeações, seu notório amigo pessoal, Thompson Flores, que era o presidente do TRF-4 quando Sérgio Moro pintava e bordava na Lava-Jato, chegando a garantir ao delegado da PF que descumprisse a ordem do desembargador Favretto e não soltasse Lula.

A vingar esse projeto, Moro subiria fácil ao STF, onde poderia até forçar Gilmar Mendes a se aposentar com alguma mensagem de whatsapp conseguida por dissimulação, sua única habilidade profissional conhecida até agora.  

O plano do STF, que pode estar se fundando numa falsa percepção de cismogênese simétrica entre Bolsonaro e Moro, é uma aposta arriscada pela existência de variáveis sem muita nitidez ainda. Muito mais simples foi impedir a nomeação de Lula como ministro de Dilma, mesmo assim Gilmar Mendes se arrependeu dessa barbaridade judicial, já que afinal hipertrofiou Moro de tal maneira que o então juiz federal passou a ser o incômodo suprajurídico pairando [até hoje] sobre as decisões da Suprema Corte.

Mas, enfim, parece inútil chamar atenção para todos esses achaques se eles atuam como privilégio intangível do Judiciário. Parafraseando o moralista francês La Rochefoucauld, a única coisa que o STF só não suporta, na hora de decidir, é ver nos outros seus próprios defeitos.

Vitória da Conquista, 29 de abril de 2020, 16h.