POR QUE “ANORA” LEVOU A MELHOR
- João Batista de Castro Júnior tem Doutorado em Língua e Cultura pela UFBA e é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), onde foi docente e Vice-Coordenador do Mestrado em Letras e Linguagens
- Por João Batista de Castro Júnior
- 05 Mar 2025
- 09:37h

Foto: Reprodução
Na Copa do Mundo de 1982, na estreia do Brasil contra o time da antiga União Soviética, aquela seleção, que é considerada por muitos a melhor de todos os tempos, terminou com uma boa exibição técnica de nossos jogadores na vitória de 2x1. Todavia, o marcador poderia ter sido favorável ao adversário, que abriu a contagem, se o árbitro espanhol Lamo Castillo vergonhosa e acintosamente não tivesse deixado de marcar dois pênaltis claros cometidos pelos jogadores brasileiros. O episódio reforçou um discurso muito murmurado aqui e ali com muita razão pelos comunistas durante a Guerra Fria: “nunca irão deixar a União Soviética ganhar uma Copa”.
A Europa Central, mesmo com certa autonomia para falar certas coisas, mas que nunca disfarçou bem a relação de capatazia política e ideológica, sobretudo naquela época, fazia o jogo dos EUA: se os ianques não sabiam jogar futebol, a acirradíssima disputa esportiva nos jogos olímpicos, sobre qual regime econômico era mais capaz de produzir campeões saudáveis, não seria decidida pela habilidade soviética no futebol, pois já bastava a inquestionável superioridade no campo da literatura, sem similar ontem, hoje e, posso vaticinar, no futuro em terras norte-americanas. Afinal, não se produzem Dostoievskis, Tolstois, Gorkis etc com espetáculos de cassino.
Esse pequeno respigo geopolítico, que atravessa a disputa, surpreendentemente nunca é percebido por certos críticos brasileiros de cinema, sempre ciosos de conhecerem, de cabeça, datas, nomes e sobrenomes dos artistas, além de se deleitarem em simplesmente repetir fofocas que leram pela imprensa de língua inglesa, pululando de entusiasmo que lembra o de uma criança que vai à primeira vez à Disneylândia. Pra ficar mais fácil essa compreensão: é como se o cinema fosse um desfile de modas (embora Hollywood não deixe também de sê-lo) em que o trabalho crítico se limitasse a analisar o que se desenrola na passarela sem nunca se perguntar sobre o que estranhamente ficou fora dela.
Com certa ingenuidade terceiro-mundista, esse tipo de crítico brasileiro parece ainda teimar em acreditar que aquela frase em latim, “ars gratia artis”, que aparece acima do leão que ruge na abertura dos filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, traduzível como “a arte mira exclusivamente produzir prazer estético” – copiada de “L’art pour l’art”, de Baudelaire –, seja de fato a melhor leitura para as votações que ditam os ganhadores do Oscar.
O filme “Anora” – que, não se pode esquecer, é dirigido por um estadunidense, e não por um russo – não esconde a velha cortina ideológica de enaltecimento dos valores ianques que, em realidade, enfrentam avançada corrosão pela deterioração econômica e fiscal, com consequente ameaça futura a seu capital geopolítico, pelas condições cada vez mais indignas de trabalho e saúde para os próprios americanos, e ainda pelo consumismo destrutivo da Natureza e por suas licenças morais, sendo estes dois últimos os principais argumentos que os russos – falando nesse ponto por toda a Ásia e Oriente de um modo geral – sempre brandiram no campeonato discursivo travado com os EUA.
Quando “Anora” retrata então que até oligarcas russos se esbaldam com o que o capitalismo-raiz dos EUA ainda pode oferecer, desde que se tenha muito dinheiro para torrar, a ideologia carregada por uma Hollywood cada vez mais decadente, e já sem o glamour das décadas de 1950-1970, se sentiu representada e contemplada.
O ponto alto do filme, que pode ter passado despercebido, nem é aquele “plot twist” do final, mas sim a alegria esfuziante do personagem Ivan “Vanya” Zakharov, filho de um bilionário russo, em poder possuir a cidadania americana. Ou seja, ali se pretende a Rússia em humilhante capitulação de joelhos perante tio Sam, levada ao extremo quando o padrinho russo Toros, interpretado por Karen Karagulian, nascido na União Soviética, que injustamente não foi nem ao menos indicado ao prêmio de melhor ator, constata que a nova geração que vive nos EUA não dá importância alguma aos valores tradicionais de que tanto se orgulha a pátria-mãe.
Hollywood realmente não tolera Trump, que passa como um trator até sobre seus aliados, mas nem por isso deixa de ser trumpista em gostar de vender suas mercadorias e seus valores como bom comerciante que todo ianque é. Portanto, um herdeiro russo bilionário infantilizado sob o poder das drogas, incapaz de conquistar alguma americana de “boa estirpe”, mas que aparece comprando o desprezível amor de uma prostituta que mora no subúrbio ferroviário, é um presentaço para um império que vive às tontas por estar em declínio.
Nessas horas, esse fio temático tem que passar à frente de qualquer outra produção, por mais bela e refinadamente artística que seja, tal como “Ainda estou aqui”, capitaneada pela deslumbrante atuação de Fernanda Torres, como há muito tempo não se vê nas películas nativas dos EUA. O filme nacional está de parabéns. Ao contrário de “Anora”, inspira profunda paz e elegante dignidade ao mostrar a resistência emocional de uma mulher recimentando, com as lágrimas do silêncio, os tijolos familiares, para evitar desagregação, e mostra que há poética possível na superfície mesmo com os uivos vindos dos porões da brutalidade mais sórdida.