TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS E COMBATE À CORRUPÇÃO E À IMPROBIDADE

  • João Batista de Castro Júnior. Professor Doutor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado.
  • 05 Mai 2018
  • 18:22h

Foto: Reprodução

 

           A Teoria das Janelas Quebradas e seu uso jurídico no Brasil

A imprensa nacional divulgou recentemente a iniciativa de procurador do MPF em propor ação civil pública por improbidade em relação a certo prefeito de uma cidade baiana, que teria dançado no palanque de uma festa junina bancada com recursos do Ministério do Turismo.

Essa atitude do procurador, embora ele não o diga, deixa à mostra a prestigiosa influência da Teoria das Janelas Quebradas, nascida, em 1982, sob a gestão conceitual do cientista político James Wilson e do psicólogo e criminologista George Kelling, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde foi originariamente denominada de "Broken Windows Theory" .

Ambos os pesquisadores se fundaram nas investigações feitas sobre dois automóveis idênticos deixados em dois lugares diferentes, um no Bronx, bairro pobre e conflituoso, situado em Nova Iorque, e outro em Palo Alto, cidade rica e tranquila, situada na Califórnia. No Bronx, o veículo foi depredado em poucas horas.  O de Palo Alto permaneceu preservado até o instante em que os vidros foram intencionalmente quebrados pelos pesquisadores, o que deu lugar ao mesmo processo de vandalização.

A partir dessas observações, concluiu-se que a etiologia desses dois delitos não estava na pobreza, como a princípio se pensou, mas na impunidade, ou melhor, na corrosão da credibilidade punitiva pela ausência de combate à criminalidade. As conclusões desse estudo de psicologia social, que estabelecem uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade, acabaram por ser adotadas como política de segurança pública nos Estados Unidos com o nome de Tolerância Zero, inspirada pelo direito penal máximo.

Apesar de algumas reservas críticas, inclusive metodológicas, antepostas ao experimento e sua teoria, no Brasil serviram ambos como uma luva no prurido de combate à corrupção e à improbidade que se instalou por aqui, capitaneado sobretudo por jovens membros do Judiciário Federal e do Ministério Público Federal, tomados muitas vezes pelo ingênuo fascínio com a impressionante funcionalidade das instituições nos Estados Unidos, aonde alguns vão para cursos de pequena e média duração, mas desprovidos, o que é próprio da formação jurídica, de escrutínio crítico sobre fatores históricos, sociológicos e econômicos na construção geopolítica da superpotência do Norte, como se fossem facilmente alcançáveis seus resultados de desenvolvimento social apenas pelo bom manejo de instrumentos jurídicos punitivos, como é levado a crer o indivíduo afoito que se deixa conduzir exclusivamente pelas produções policiais do circuito comercial do cinema.

 

Esse fascínio lisonjeiro e acrítico não raro faz atores jurídicos nacionais tomarem com bússola operacional até um dispositivo defeituoso. Bom exemplo disso está no organograma que aquele procurador do MPF adotou para registrar suas convicções sobre a responsabilidade penal do ex-Presidente Lula, um modelo que ele teria copiado dos Estados Unidos (1), onde tem sido fortemente hostilizado como sendo estratagema manipulador dos jurados (2), e por isso mesmo sistematicamente rejeitado pelos juízes.

          Analogias jurídicas e importação de conceitos e teorias

A prudência metodológica de qualquer profissão deveria ter sempre em mente que a complexidade do mundo é sempre maior do que a complexidade de um sistema.  Por mais didáticas que pareçam ser as linearidades nele introduzidas, as não linearidades existem e podem gerar aleatoriedades inquietantes. É isso que ocorre quando se transpõe por analogia uma teoria de um país como os EUA para o Brasil sem adaptação ou com desatenção para com fatores causais importantes.

Nem mesmo considerando a substituição do conceito de sistema aberto/fechado pelo autopoiético, entendido este como um sistema de complexidades que opera cerradamente com seus próprios elementos, se pode fazer essas transposições tão simplistas, até porque a autopoiesis não nega a importância do meio para o sistema (3), sem falar que há estudiosos, como Marcelo Neves, que se recusam até a identificar o sistema jurídico brasileiro, alocado no que ele chama de modernidade periférica, como autopoiético. Nas palavras do próprio Neves, “as sobreposições particularistas dos códigos político e econômico às questões jurídicas impossibilitam a construção da identidade do sistema jurídico” (4).

É preciso, então, problematizar, no âmbito de estudos jurídicos, esse modelo de atuação ditado por compêndios propedêuticos e pelo bisonho furor heroico, que se mostram pragmaticamente úteis a um paradigma político montado sobre bases ideológicas de quase invisibilidade, já que, alerta Morin, “o paradigma é invisível para quem sofre os seus efeitos, mas é o que há de mais poderoso sobre as suas ideias” (5).

Esse enredamento ideológico do paradigma instalado é, de fato, desafiador na sua compreensão, tendo em vista, nas palavras de Hannah Arendt, que “as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos” (6).

Certamente se mostraria de grande fecundidade, nos domínios jurídicos, o aumento qualitativo da crítica a esse envolvente condicionamento que produz deslocamento das questões realmente axiais do delito e da improbidade. A propósito, contra isso adverte Arendt que “a moderna ciência natural deve os seus maiores triunfos ao fato de ter olhado e tratado a natureza terrena de um ponto de vista verdadeiramente universal, isto é, de um ponto de vista arquimediano escolhido, voluntária e explicitamente, fora da Terra” (7).

A responsabilidade republicana de um juiz ou de um promotor/procurador do Ministério Público, então, deve correr à conta de maior dose de reflexão para além de categorias conceituais meramente jurídicas, embora, parafraseando Pontes de Miranda, um jurista-sociólogo nas palavras de Gilberto Freyre (8), isso seja como pedir maçã aos castanheiros, pois os profissionais do Direito hoje, em sua grande maioria, têm sua formação fortemente ancorada em fórmulas fáceis conhecidas como macetes, o passaporte da aprovação nos concursos, em detrimento da argúcia para análise de questões sociais e econômicas.

A sociedade ganharia muito se esses moços, antes de serem embalados pelos sonhos de agentes salvadores e transformadores de uma sociedade desigual, evitassem se lançar em aventuras jurídicas que podem contribuir para torná-la ainda mais desigual e discriminatória ao assestarem suas baterias punitivas sobre fatos de menor relevância.

         A falta de estofo técnico na compreensão dos mecanismos não jurídicos de improbidade/corrupção

Além dessa ausência de conexão da formação legal com a vida social em suas diversas abordagens não jurídicas, de um modo geral tem ainda confessadamente faltado refinamento técnico, agora no interior do Judiciário e do Ministério Público, na compreensão estrutural dos mecanismos por trás das reais condutas ímprobas ou corruptas. 

Um exemplo da minha experiência na magistratura ajuda timidamente a compreender, a contrario sensu, o desajuste desse foco jurídico de base livresca, com que muitas vezes operam os agentes do combate à improbidade e à corrupção no âmbito acusatório e judicial: há mais ou menos 9 anos, fui procurado, em meu gabinete, por um profissional liberal, que me conhecia a partir de sentenças de improbidade divulgadas na imprensa, queixando-se de que a empresa que o contratara se recusava a fornecer-lhe recibo do que fora pago, o qual ele queria declarar para fins de Imposto de Renda. Por me parecer estranha aquela recusa do empregador, como a denotar algo de maior relevância, eu o encaminhei à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal. A investigação policial acabou por descortinar uma rede de improbidade e corrupção com dinheiro público a cargo dos contratantes, que recrutavam profissionais por preço abaixo da tabela de mercado, os quais tolerantemente não exigiam recibos por razões de conveniência pessoal, o que dava lugar a que a empresa lançasse na prestação de contas, aos órgãos de controle, valores maiores, apropriando-se da diferença, além de encaixar contabilmente a falsa destinação na rubrica correta do convênio, dando impressão de regularidade inicialmente acima de suspeitas.

Por esse episódio se conclui que se fosse buscada a mera solução de acionar a empresa por improbidade por não ter fornecido recibo, ou processá-la e a seus dirigentes por delito tributário, ficariam de fora aspectos muito mais reveladores do esquema criminoso.

         Improbidade não é o mesmo que inabilidade administrativa

Essa ocorrência também ajuda a ilustrar o que muitas vezes acontece em alguns processos de corrupção e improbidade: foco excessivo num epifenômeno, entendido como algo cuja existência não altera as qualidades essenciais de uma coisa. Essas detecções epifenomênicas no universo da ilicitude podem não passar muitas vezes de irregularidades, que não se confundem com improbidade.

A insistente confusão que se faz a esse respeito termina sendo desmotivadora, fortalecendo a ideia de que Juízes e Tribunais estão sendo compassivos com o ilícito.  Tropeços acusatórios nesse sentido têm sido relativamente numerosos, mesmo os autores especializados chamando a atenção para o fato que “o objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto, não o inábil” (9).

O Superior Tribunal de Justiça modelou sua jurisprudência por essa angulação teórica ao decidir, em julgado que tem sido reiteradamente seguido, que “a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé” (10).

Tome-se como parâmetro um caso levado a julgamento por essa Corte, que dá ideia aproximada de como muitas propostas acusatórias estão borradas: um ex-Secretário  de  Educação, do Espírito Santo,  “realizou processo licitatório  na  modalidade  concorrência  para  aquisição de livros didáticos  pelo  critério  do  menor  preço”, sendo que, embora tenha  sido  aferida  a regularidade procedimental da licitação, o Ministério Público pediu “condenação   pela   prática  de  ato  ímprobo,  por  entender  haver imprudência  na  aquisição  dos  livros,  uma  vez  que era possível adquiri-los por preço menor daquele alcançado no certame” (11).

Essa imputação vaga de “imprudência”, decorrente de insuficiência técnica do acusador, não podia senão resultar em improcedência , como o foi, depois de o processo ficar anos percorrendo o longo caminho das instâncias jurisdicionais.

Casos assim têm se tornado por vezes cansativos, pois demandam energia intelectual e de trabalho em aspectos irrelevantes, roubando tempo para aprofundamento de meios investigatórios, inclusive da capacidade de ler corretamente dados (contábeis, de engenharia, etc) enovelados nos fatos que dão origem às suspeitas de desvios, como se vê recorrentemente na carência de habilidade, por exemplo, com os meandros técnicos dos aditivos contratuais, onde costumam se localizar os maiores ardis, e com intrincados aspectos contábeis e construtivos.

          Conclusão

A montagem de uma membrana ideológica precisa ser mais intensamente explorada no âmbito da formação acadêmica do Direito, sob pena de seus operadores teimarem muitas vezes em fixar-se em focos secundários, achando-se fiéis cumpridores de seus deveres, animados alguns pelo sucesso midiático, sem se darem conta de que muitas vezes estão se prestando ao triste papel de agentes úteis a escusos interesses políticos e econômicos.

Ao lado disso, graves manobras escondidas nas dobras de fatos menores, os quais se tornam foco de repressão processual, podem estar passando despercebidas dos agentes legais, terminando por fazer a acusação engasgar com uma mosca depois de ter engolido um boi.

É possível que, no Município do prefeito dançador, haja de fatos problemas que estejam a merecer a atenção investigatória do Ministério Público Federal, que, ao eleger esse tipo de alvo anódino, corre o sério risco de perder o controle de gestão de suas tarefas, pois fatos similares, igualmente sem maiores potencialidades lesivas, podem inundar a instituição, atravancando sua capacidade de dar conta das atribuições legais.

Perder tempo com folclore político, a pretexto de combater corrupção e improbidade, é mostrar servil obediência à Teoria das Janelas Quebradas. A propósito, se o Ministério Público do Estado de São Paulo não tivesse prestado atenção apenas às janelas de vidro estilhaçadas do Edifício Wilton Paes de Almeida, que depois ruiu tragicamente, e procurasse se inteirar de detalhes técnicos mais aprofundados, o pesadelo poderia ter sido evitado. Em vez disso, preferiu arquivar a investigação, movido por conceitos jurídicos inservíveis, mas que se revelaram desastrosos para vidas humanas.   

Eis um bom resumo do que pode estar se tornando o propalado combate à corrupção e à improbidade: completo alheamento à Teoria Social e crescimento em extensão de tarefas com sacrifício da profundidade técnica.

Nessa perspectiva, em vez de Teoria das Janelas Quebradas, talvez se esteja dando silenciosamente lugar à incidência de outra concepção muito em voga, a do Efeito Borboleta, segundo a qual, num contexto de múltiplas variáveis, detalhes inobservados ou negligenciados geram reação em cadeia, que pode causar efeitos de grande escala.

Por outra: nesse contexto, a corrupção esteja talvez se refinando cada vez mais, enquanto os xerifes mal conseguem correr atrás das moscas.  

 

*Agradeço a Renato Peixoto Junior, aluno do curso de Direito da UNEB, em Brumado, e à Promotora de Justiça Solange Anatólio do Espírito Santo, do Ministério Público do Estado da Bahia, pelo estímulo para tratar deste tema.

 

REFERÊNCIAS

1. https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-inspiracao-de-dallagnol-para-seu-power-point-velhaco-por-paulo-nogueira/

2. https://www.wired.com/2014/12/prosecutors-powerpoint-presentations/

3. MATHIS, Armin. A sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Disponível em: https://www.infoamerica.org/documentos_pdf/luhmann_05.pdf

4. NEVES, Marcelo. Luhmann, Habermas e o estado de direito. Lua Nova, São Paulo,  n. 37, p. 93-106 (99),    1996 .   Available from . access on  04  May  2018.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451996000100006

5. MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, 1996, p. 31.

6. ARENDT, Hannah. A condição humanaTradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17.

7. Op.cit., p. 19-20.

8. FREYRE, Gilberto. De Giddings a RecasénsCiência & TrópicoRecife, 15(1): 7-14, jan./jun. 1987, p. 12.

9. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Limite da Improbidade Administrativa.  2. ed. América Jurídica, p. 7.

10. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1512047/PE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/06/2015.

11. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 553150 / ES, rel. Ministro Gurgel de Faria, j. 12/09/2017.


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