Paris, Beirute, Mariana e as Vidas Humanas: Observações sobre o Incomparável

  • Por Sylvia Moretzsohn
  • 17 Nov 2015
  • 06:51h

(Fotomontagem: Brumado Urgente)

A ênfase da cobertura jornalística aos ataques terroristas em Paris, que, segundo as informações iniciais, mataram pelo menos 129 pessoas e deixaram mais de 350 feridos, provocou a previsível reação nas mídias sociais entre os contestadores do “sistema”: como em episódios semelhantes, multiplicaram-se os comentários que acusavam a relativização da importância da vida humana e a indignação seletiva diante da tragédia, tendo em vista o silêncio ou a naturalização sobre o que ocorre em outras partes do mundo. Foram muitos os protestos contra a disparidade de tratamento, por exemplo, entre o que ocorreu em Paris e em Beirute, onde, na véspera, um ataque da mesma índole matou 43 pessoas e deixou quase 240 feridas.

Da mesma forma, proliferaram as comparações com a situação dos mortos e desabrigados na recente catástrofe ambiental em Mariana, ou com a rotina de mortes violentas no Brasil, que em 2014 fez 160 vítimas por dia. São duas questões distintas, mas que remetem ao mesmo apelo humanitário, tão sensível quanto pouco esclarecedor: de fato, do ponto de vista humanístico, nenhuma vida deveria valer mais (ou menos) que outra.

Entretanto, não foi assim ao longo da história, e menos ainda no capitalismo, que tende a transformar tudo e todos em mercadoria: não é muito difícil constatar que as vidas têm valores muito diferentes conforme a posição social que se ocupa. Numa crítica mordaz aos critérios de notícia que orientavam — e orientam — a imprensa, Alexander Cockburn dizia que “os editores devem se lembrar de que há extensas partes do mundo nas quais as pessoas não existem a não ser em grupos de mais de 50 mil”. Recordei a atualidade deste comentário, publicado há quatro décadas, quando escrevi sobre o abismoentre a comoção provocada no início do ano pelo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, também em Paris, e o massacre de 2 mil pessoas promovido dias antes pelos fundamentalistas do Boko Haram em Baga, na Nigéria. Tentei então demonstrar que a lógica perversa apontada pela ironia de Cockburn fazia sentido do ponto de vista geopolítico (e jornalístico): o que ocorre nos países mais importantes tem mais relevância, inclusive pelos desdobramentos políticos que esses acontecimentos podem provocar.

Paris e Beirute: diferenças

É fundamental noticiar o que ocorreu em Beirute para que sejamos capazes de apreender a tragédia da guerra que se desenvolve na região. Mas a rotina da guerra é a rotina de tensões, desespero, mortes: fora os grandes massacres, só um esforço de redirecionamento da cobertura poderia tentar chamar a atenção do público não afetado diretamente por esse drama.

Já os ataques perpetrados em Paris rompem a rotina. Além do sentido simbólico da violência contra um ícone do iluminismo e contra a cidade que há muito tempo é o principal destino turístico no mundo, têm outra dimensão política: trazem consigo o crescimento da onda de xenofobia que se alastra pela Europa, aumentando o drama dos refugiados dos conflitos no Oriente Médio e da África — tanto os que estão em trânsito quanto os que já vivem em acampamentos — e afetando os imigrantes já estabelecidos; o recrudescimento de medidas de vigilância na França e nos demais países potencialmente visados, que restringem os direitos dos cidadãos e alimentam um clima de insegurança e desconfiança, prato cheio para a manipulação do medo social; e o incremento da guerra contra o Isis, o “Estado Islâmico”, com a consequência trágica previsível.

O alarde em relação ao ataque permitiria pôr em causa a discussão fundamental sobre quem financia o terrorismo — em suma, os laços entre os Estados democráticos e a indústria armamentista no estímulo ao nascimento desses grupos que depois vêm atacá-los, o emaranhado de interesses envolvidos na promoção de guerras, o próprio terrorismo de Estado convenientemente dissimulado como forma legítima de combate. E é claro que, exatamente por esses motivos, seria preciso contestar o comportamento do âncora que olha muito sério para a câmera e avisa que somos “nós contra eles”, a civilização contra a barbárie.


Paris e Mariana: disparates

Se são claras as diferenças de ênfase entre o que ocorreu em Paris e em Beirute, que estão no mesmo contexto, mais ainda deveriam ser as diferenças entre a carnificina na capital francesa e a tragédia ambiental em Mariana. Comparar um ato de terrorismo com uma catástrofe provocada pela ganância empresarial e esse misto de negligência e conivência do poder público com interesses privados é ignorar uma distinção fundamental da origem e das consequências de cada fato. O que aconteceu em Mariana, e que até o momento mereceu uma cobertura pífia da nossa mídia hegemônica, é de uma gravidade incomensurável, mas nada tem a ver com ataques terroristas, nem pode provocar consequências semelhantes. Tampouco o absurdo índice de mortes violentas no Brasil ou, mais especificamente, a situação da periferia das grandes cidades do país, pode servir como elemento de comparação para os atentados de Paris. Porque só é possível comparar o que tem a mesma substância.

Uma das inúmeras manifestações no Facebook recordou as famosasMeditações de John Donne, depois tratadas como poema, sobre o pertencimento de cada pessoa ao gênero humano: “no man is an island entire of itself, every man is a piece of the continent…”. Por isso não faria sentido perguntar por quem os sinos dobram: “eles dobram por ti”.

Deplorar o sangue derramado é uma necessidade em qualquer circunstância. Mas, do ponto de vista da política, as circunstâncias fazem toda a diferença. É isto que o bem intencionado apelo humanitário ignora, ao promover essa generalização que só ajuda a confundir e dificulta a luta necessária por um mundo menos desigual e violento.