Mineração de urânio no sertão da Bahia traz à tona memória de contaminação

  • Caio de Freitas Paes - Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
  • 20 Out 2019
  • 07:03h

Houve pelo menos cinco acidentes com material radioativo no ciclo anterior de mineração em Caetité, entre 2000 e 2014 Foto: Acervo INB / BBC News Brasil

Um dos objetivos do governo de Jair Bolsonaro é retomar projetos da indústria nuclear. Em 26 de setembro, foi anunciada a construção de seis novas usinas no país até 2050, como parte do Plano Nacional de Energia, com investimentos previstos de R$ 30 bilhões.Dias depois, em 7 de outubro, o governo liberou os trabalhos, ainda que preliminares, em uma mina de urânio no sertão da Bahia, sob responsabilidade das Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Não há exploração nessa área há cinco anos.  A autorização trouxe de volta à memória de quem vive nos municípios de Caetité e Lagoa Real problemas graves ligados à mineração do material radioativo. Autoridades denunciam casos de câncer na população local provocados pelo contato com a radiação e danos ainda pouco conhecidos ao meio ambiente. Só entre 2000 e 2009, houve pelo menos cinco acidentes que contaminaram parte dos rios e solo da região, de acordo com um relatório da Secretaria de Saúde da Bahia ao qual a BBC News Brasil teve acesso. Antes da atual retomada, a INB explorou a área até 2014. A licença concedida pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) no último dia 7 autoriza extração na mina do Engenho, que é parte da usina de beneficiamento nuclear da INB em Caetité, a 645 km de Salvador.

A retomada da mineração de urânio no sertão da Bahia tem apoio do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque - que foi diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha no governo de Dilma Rousseff.

Em setembro, Albuquerque defendeu o investimento em energia nuclear brasileira na Conferência Geral da Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena, e disse que prevê "um novo modelo de negócios para a mineração de urânio e a gestão de rejeitos de mineração, incluindo parcerias público-privadas".

Monopólio estatal

A mineração de elementos radioativos como o urânio tem hoje monopólio do governo por meio dessa empresa estatal mista, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Em abril de 2019, a mesma comissão já havia renovado a licença de operação da usina de beneficiamento como um todo, que fica a 40 km do centro de Caetité, em uma das etapas da retomada das operações no complexo.

Segundo a assessoria de imprensa da INB, ainda faltam etapas do licenciamento da CNEN, além de uma licença do Ibama, para que a extração de urânio recomece plenamente na mina do Engenho. Da liberação no dia 7 para cá, foi autorizada uma operação na qual o urânio já extraído é quebrado e organizado em pilhas, de onde é retirado um líquido pastoso que depois segue às etapas de enriquecimento nuclear.

Oficialmente, a unidade federal de beneficiamento e mineração em Caetité ocupa uma área de 1,7 mil hectares - mais de 2 mil campos de futebol - e tem 99 mil toneladas de urânio em reservas. Entre 2000 e 2014, a INB extraiu 3.750 toneladas de minério de urânio, altamente radioativo, da mina de Cachoeira, também parte do complexo de Caetité e hoje inativa.

Segundo sua assessoria, a estatal "desenvolve um programa de recuperação de áreas degradadas, aprovado pelo Ibama, como medida de compensação ambiental" pelas atividades ali.

O urânio retirado do solo pela INB é concentrado em um formato líquido, chamado de licor, e depois enriquecido, tornando-se um pó de tom amarelo vivo chamado "yellow cake". Depois, este é transportado em caminhões por mais de 700 km até Salvador.

O material passa por cerca de 40 municípios e, da capital baiana, é enviado em navios para Canadá e Holanda, onde cumpre outras etapas do enriquecimento, segundo um relatório do Greenpeace de 2008. Ao fim, ele retorna como combustível para os reatores das usinas nucleares de Angra 1 e 2, no litoral do Rio de Janeiro.

Os trabalhos da INB em Caetité são marcados por críticas, denúncias e processos em relação a sequelas tanto na população quanto no meio ambiente. Próximas às suas instalações ficam pequenas comunidades agrárias como Barreiro, Juazeiro e Maniaçu, além do Quilombo de Malhada.

Em Caetité, cidade de 51 mil habitantes no sertão baiano, autoridades estaduais atribuem uma maior ocorrência de câncer nos moradores locais às atividades da usina.

"Há uma incidência muito alta [de câncer] em Caetité, alguns [tipos] possivelmente ligados à mineração de urânio - como câncer de tireóide e de pulmão, mais prováveis graças à emissão de gases tóxicos na mina", diz à BBC News Brasil Letícia Nobre, diretora de Vigilância da Saúde do Trabalhador do governo da Bahia (Divast).

Para atender a esses pacientes, em setembro de 2019 o governo da Bahia anunciou um acordo com a prefeitura de Caetité para criar um hospital especializado em oncologia no município.

Segundo a Secretaria de Saúde da Bahia, estudos de impacto ambiental da usina realizados há mais de 20 anos já apontavam problemas no empreendimento.

Por causa das explosões usadas para extrair o urânio do solo, partículas radioativas se espalham pelo ambiente ao redor, contaminando a vegetação com um gás tóxico, o radônio. Esse gás pode agredir a pele dos trabalhadores e também se espalha por comunidades próximas.

Os estudos de impacto ambiental previram que haveria contaminação de mananciais subterrâneos, assoreamento dos rios por causa do depósito de sobras da mineração e inviabilidade do uso da água em pontos como o Córrego do Engenho.

Durante a mineração de urânio nessa área, órgãos como o antigo Instituto de Gestão de Águas e do Clima da Bahia identificaram contaminações radioativas de cursos d'água próximos ao complexo da INB.

Tanto o governo estadual quanto organizações civis criticam a falta de transparência da INB em relação às suas atividades e à saúde de seus funcionários. A Diretoria de Vigilância da Saúde do Trabalhador da Bahia disse à BBC News Brasil que, desde 2000, seus técnicos foram impedidos de fiscalizar o complexo da INB por diversas vezes. No total, houve apenas cinco inspeções do órgão ali, realizadas espaçadamente desde 2008.

"Temos dificuldades de acesso a informações sistemáticas sobre os cuidados epidemiológicos e sanitários [implantados pela INB] dentro do complexo", diz Letícia Nobre.

Procurada pela BBC News Brasil, a estatal afirma que sempre teve uma política de "portas abertas" e que suas atividades em Caetité são repletas de "desinformação e os mitos" em torno da mineração de urânio.

A INB afirma ainda que "desenvolve permanentemente programas de monitomento ambiental e de proteção radiológica para assegurar a qualidade do meio ambiente e preservar a saúde de seus empregados e da população das proximidades".

Acidentes 'mal explicados'

Acidentes dentro das instalações da INB nem sempre foram devidamente divulgados à sociedade.

Segundo relatório de 2009 feito pela Superintendência de Vigilância e Proteção à Saúde da Bahia, à época já havia ocorrido pelo menos cinco acidentes "mal explicados ou ainda sigilosos". Um exemplo foi o vazamento de 5 milhões de m3 de licor de urânio e lama radioativa no solo e no Riacho das Vacas por mais de dois meses, sem parar, em 2000.

"Só após um ano [ou seja, em 2001] a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) admitiu o acidente, estimando que 67 quilos de concentrado de urânio vazaram por 76 dias", consta no documento do órgão estadual baiano.

Ainda segundo a secretaria estadual, técnicos da CNEN chegaram a recomendar o fechamento da mina de Cachoeira "por risco de desabamento e contaminação da água". A extração, porém, seguiu até 2014.