Ministro diz que não houve golpe em 1964 e que livros didáticos vão mudar

  • Folha de S. Paulo
  • 04 Abr 2019
  • 16:11h

Foto: Marcello Casal jr/Agência

O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou que serão feitas mudanças no conteúdo dos livros didáticos do país no que diz respeito ao golpe militar de 1964 e a ditadura que se seguiu durante 21 anos. Para o ministro, não houve golpe, e o regime militar não foi uma ditadura. As declarações foram dadas em entrevista ao jornal Valor Econômico. "Haverá mudanças progressivas [no conteúdo dos livros didáticos] na medida em que seja resgatada uma versão da história mais ampla", afirmou Vélez. "O papel do MEC é garantir a regular distribuição do livro didático e preparar o livro didático de forma tal que as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história." Segundo o ministro, o golpe em 31 de março de 1964 foi "uma decisão soberana da sociedade brasileira" e a ditadura um "regime democrático de força".O presidente Jair Bolsonaro (PSL) e um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), já tinham manifestado intenção semelhante, propondo uma revisão histórica do período em livros didáticos. "Um povo sem memória é um povo sem cultura, fraco. Se continuarmos no nosso marasmo os livros escolares seguirão botando assassinos como heróis e militares como facínoras", escreveu Eduardo em rede social, em janeiro. Nos últimos dias, devido à efeméride do golpe e o alinhamento do clã Bolsonaro com o período, foram feitas comemorações da data, determinadas pelo próprio presidente. O Planalto divulgou um vídeo no domingo em que comemorava o golpe. Um empresário assumiu nesta terça (2) a autoria do vídeo . A entrevista do ministro ao Valor é apenas mais uma polêmica envolvendo diretrizes da Educação no governo . O Ministério da Educação já tinha feito mudanças em edital para compra de livros didáticos que deixavam de exigir referências bibliográficas, abrindo brechas para erros e revisionismos. Pressionado, Vélez recuou. Logo após vencer a eleição presidencial, Jair Bolsonaro falou que tomaria conhecimento do conteúdo da prova do Enem antes do exame. O presidente havia contestado algumas perguntas  da prova de 2018, segundo ele, com "questões menores" — acerca de diversidade sexual. Vélez deu aval ao presidente.ministro-da-educacao.shtml) para ter acesso à prova antes de sua realização, o que desafia critérios técnicos e de segurança do exame. O filósofo Roberto Romano, professor de ética da Unicamp, diz que o ministro não pode tratar a história de um povo com essa leviandade. "O que o ministro diz não tem sentido nenhum. Há uma historiografia cientificamente estabelecida, testemunhos históricos, documentos, pessoas vivas que foram torturadas, cassadas, postas fora dos seus trabalho e exiladas", diz ele, autor de "Brasil: Igreja contra Estado". Para Romano, ele próprio torturado na ditadura militar, a fala de Vélez não condiz com alguém que ocupa o cargo do ministro da Educação. "Ele esta fazendo um trabalho de propaganda política exatamente da maneira que se tentou falar sobre a ditadura Vargas e a ditadura de 1964", diz. "O cargo de ministro deve ser de garantir a pesquisa cientifica e [produção de] evidências, e não slogan e ideologias. É má fé autoritária e inconstitucional. Ele não pode usar o cargo para mentir sobre a história". Para a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, professora da USP, trata-se de negacionismo histórico. "Todos nós estamos nos empenhando em combater essa visão absurda. A história está mais do que provada, que houve um golpe civil-militar e que ele resultou numa ditadura de longa duração", diz ela, ex-presidente da Associação Nacional dos Professores Universitários de História. "Há pequenas discussões sobre se foi ditadura militar ou civil-militar, mas jamais pode se dizer se deixou de ser um golpe e que se instalou a partir dai uma ditadura por conta dos militares". Capelato ressalta a maior gravidade por se tratar de iniciativa que envolve livros didáticos. "Os livros didáticos são feitos por alguns especialistas e não se chega a fazer um debate profundo com os historiadores". Em meio às polêmicas relacionadas ao conteúdo, o Ministério da Educação passa por uma crise envolvendo seus servidores, divididos entre os de perfil técnico, oriundos em sua maioria do Centro Paula Souza, os indicados por militares e os indicados por Olavo de Carvalho, guru intelectual de Bolsonaro. O racha resulta em uma série de demissões e desencontros na pasta.