Artigo: OS 45 ANOS DE OURO DE TOLO E A INTERVENÇÃO MILITAR

  • João Batista de Castro Júnior, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado.
  • 31 Mai 2018
  • 09:39h

Sempre que ouço tocar Ouro de Tolo, não disfarço o desconforto emocional, porque não me concilio bem com a ideia de fazer do passado uma espécie de taramela que trava a porta a novas experiências, pois mesmo um pretérito feliz, se carregado com essa obsessão, torna a jornada uma eterna procissão fúnebre, similar à tragédia de Joana de Castela, dita "a Louca", que embalsamou o cadáver de seu marido, Filipe, o Belo, e se punha a arrastá-lo à noite por oitos meses, sob frio cortante, como se o corpo sem vida pudesse reter os dias de ventura conjugal.

Mas a belíssima canção de Raul Seixas merece uma homenagem nos seus 45 anos. E aí inevitavemente ela me joga de volta ao ano do seu lançamento, 1973, quando, morando em Jacobina, tinha que comprar, como tarefa quase diária, cigarros Hollywood para meu pai num bar, a 150 metros de casa, cujo dono rodava o mesmo lado do compacto vinil o dia inteiro.  A praça Dois de Julho, onde o estabelecimento se situava, parecia enorme, gigantesca para mim, mas ainda assim festiva, com suas bandeirolas tremulantes mesmo fora do período junino, algo que me inoculava a ideia de um mundo alegremente multicor que se casava com a canção, afinal eu não tinha ainda descortino algum para entender sua letra, a não ser para simplesmente imaginar o prestígio que devia ser possuir um reluzente Corcel 73, que a propaganda política dizia ser alcançável por qualquer um que se pusesse a cumprir seus deveres cívicos e aproveitasse bem as oportunidades que o mercado oferecia.

As décadas seguintes, fiadas na roca da dedicação intelectual, me deram uma percepção algo consistente do sentido de metáforas e então descobri que Ouro de Tolo é mesmo uma obra-prima, já dissecada em sua anatomia por tantas e tão boas análises, embora eu ache que sua fisiologia metafórica ainda guarde segredos a ser desvendados ou, ao menos, tornados mais nítidos.

Creio que o maior deles é explorar o significado da decalagem entre a placidez da música e a ousadia da letra.

Raul – que nunca vi pessoalmente – certamente quis, nessa liga heterogênea entre a composição textual e a melódica, pôr em exposição duas realidades distintas da fisionomia social brasileira, embora intimamente cimentadas. 

Nesse ponto entram também coincidências que fariam se deliciar numerólogos e místicos, os quais tanto fascinaram o Raul Santos Seixas dos discos voadores: Ouro de Tolo,título de três vocábulos, como o nome de seu autor, vinda a lume exatamente em maio de 73, revela-se um fascinante contranome ao “Pra frente, Brasil”, famosa canção com título igualmente trino e lançada três anos antes para embalar os sonhos do tricampeonato mundial de futebol, cuja melodia é de outro Raul, o de Souza, e a letra de Miguel Gustavo, ainda então muito cantarolada sob a gestão do terceiro dirigente da ditadura militar, o cruel general de exército que atendia pelo trinômio Emílio Garrastazu Médici.

Deixando de lado esse misticismo numerológico de tantos “três”, o cômodo ufanismo nacionalista presentificado em “Pra frente, Brasil” é finamente ironizado por Raul Seixas, como nos versos em que canta “Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego/ Sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês/ Eu devia agradecer ao Senhor”Ou quando diz que “E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial/ Que está contribuindo com sua parte/ Para o nosso belo quadro social”verdadeiro instantâneo fotográfico do típico autômato político dos anos 70, de quebra consolável pelo cataplasma da religião, mesmo em meio a um regime grotesco para com as liberdades civis, o que, a propósito, é lembrado nas “cercas embandeiradas que separam quintais”, pois a ditadura, como todo regime de exceção, sulca uma linha divisória entre os certos e os errados por sua adesão ou discordância com os pressupostos ideológicos da dominação e, em vez de nação, o País se torna um xadrez de cubículos sociais em que uns e outros se policiam.

Qualquer pessoa, mesmo sem trato musicológico, percebe de cara que na canção não há a costumeira justaposição entre melodia e letra. Esta é maior que aquela. É uma fina metáfora não dita, mas intuível: a crua realidade brasileira era mesmo muito maior que a das aparências de bem estar econômico.

Aí está também uma crítica à aguda falta de sensibilidade política, que, quando diz respeito à própria autopercepção do indivíduo, é chamada de bovarismo por psicólogos e sociólogos, por causa da deturpação da autoimagem e do sentido da realidade, algo ainda  presente na vida socal, como vejo agora acontecer de forma ganglionar na bela Cidade em que moro há mais de 12 anos, uma das melhores de toda a Bahia, onde alguns poucos se acham brancos sem o serem, afetam um sotaque mineiro mesmo sem qualquer origem em Minas Gerais, se julgam europeus só por causa do frio e mandam às favas a história local de resistência, inclusive aos militares do golpe de 64.

Durante audiência previdenciária por mim presidida em 2012, aproveitei que José Pedral Sampaio era uma das testemunhas e conversei longamente com ele sobre a invasão da Prefeitura e sua expulsão do cargo de Prefeito em outro maio, o de 1964, quando militares da 6ª Região estacionaram um ônibus na Praça Barão do Rio Branco e começaram a deter pessoas, acusadas de ser comunistas, para levá-las rumo a Salvador, entre elas o próprio Pedral, que logo a seguir terá os direitos políticos suspensos por quase vinte anos.  

Esse tête-à-tête com o líder conquistense historicamente ilustre me deu a clara compreensão de que um punhado de desinformados que agora andam pelas ruas pedindo intervenção militar, aproveitando-se da beleza do movimento dos caminhoneiros, não simboliza a grandeza deste platô político, que é muito maior do que as marchinhas de gosto discutível por eles entoadas, que, por ironia do destino, se prestam a mostrar a vitalidade de Ouro de Tolo na crítica ao encanto com o brilho fácil, que cega a capacidade de distinguir o precioso metal da democracia da desvaliosa pirita totalitária.

De Vitória da Conquista para Brumado, 30 de maio de 2018.

Depoimento de José Pedral Sampaio: