Probus: A indicação de Augusto Aras e a encruzilhada do Ministério Público Federal

  • João Batista de Castro Júnior. Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
  • 10 Set 2019
  • 13:58h

Foto: Reprodução Google

Enquanto aluno na UFBA, fui estagiário de Aras lá nos idos de 1990-1991, quando ele, além de procurador da República, era procurador eleitoral. Afável, de bom trato, muito culto, gostava de acompanhá-lo e de seguir seus raciocínios no exercício de ambos os cargos. Quando tomei posse como promotor de justiça em 1993, lá estava ele para me dar pessoalmente os cumprimentos.

Como juiz federal, nos reencontramos nos processos agrários de desapropriação movidos pelo INCRA, quando seus pareceres como procurador eram quase sempre manuscritos, o que é indicativo de que se ocupava pessoalmente de examinar os autos, dispensando o costumeiro auxílio de assessores.

Tempos depois, foi-se para Brasília. A última notícia de relevo que li sobre ele foi quando lançou a suspeita de que estava sendo ilicitamente interceptado no âmbito da própria instituição sob a chefia de Rodrigo Janot. Não me lembro de ninguém ter dado muita importância ao vergonhoso desassossego que afirmou estar passando.

Indicado agora ao cargo de Procurador Geral da República, irá ingressar num contexto em que o Ministério Público Federal amarga seu pior momento institucional depois que os procuradores da Lava Jato, ao incendiarem os holofotes da mídia com seu prurido de exibicionismo político desacompanhado de lastro intelectual e técnico, tiveram as entranhas devassadas no que está sendo conhecido como Vaza Jato.

Contra essas inconfidências autenticadas por interlocutores externos e até mesmo por uma procuradora, aquele procurador com prenome e nome italianos tem feito apenas uma cara de tacho, esquecendo-se de que o contribuinte brasileiro não é obrigado a bancar suas sandices e seus próprios projetos políticos pessoais no exercício de um cargo público, que custaram uma prisão injusta contra um ex-presidente, o qual ninguém teve até agora coragem de soltar por razões incógnitas, já que, do ponto de vista jurídico, aquela pífia sentença, de um juiz politicamente preordenado a condenar com base em ficções indiciárias, envergonha qualquer estagiário de Direito que seja aplicado nos estudos.  

Não admira, pois, que ouvir Sérgio Moro e o procurador chefe da Lava Jato, em qualquer tipo de assunto, mesmo jurídico, é hoje o melhor remédio contra a insônia pelo alto teor soporífero do que falam e pela indigência intelectual, compensada quase sempre com o uso da manobra retórica de só aludirem ao combate à corrupção, o que termina embotando a gravidade do que fizeram e que já deveria, no mínimo, ter dado lugar a um afastamento cautelar de Dallagnol de suas funções.

Mas aí está o ponto de pouca visibilidade que isso envolve: há tempos, procuradores do MPF, animados pelos poderes hipertrofiados – com o surpreendente referendo do STF e do STJ e apoio da imprensa corporativa – que abocanharam da Polícia Federal, da Defensoria Pública e em certa medida do próprio Judiciário, como já analisei em outro lugar (https://www.probusbrasil.org.br/noticias/255-a-autenticidade-dos-dialogos-entre-moro-e-o-mpf-o-pesadelo-de-um-juiz-parcial), tornaram sua carreira mais juridicamente sedutora do que qualquer outra, já que a instituição não tem uma hierarquização disciplinar rígida e se mantém internamente longe das bolorentas liturgias do Judiciário.  

Nessa configuração dos fatos, o CNMP, se já tinha receio de reprovação social e do poderoso corporativismo de certos setores da imprensa se metesse a mão na cumbuca da Lava Jato, mesmo havendo nela tantas distorções desautorizadas pela Constituição, pelo Código de Processo Penal e pelo Código de Ética do Ministério Público, agora defronta-se com temor de outra tonalidade: punir Dallagnol e sua caterva pode desencadear uma reação sistêmica de redução do MP aos limites constitucionais, o que importará devolver a quem de direito atribuições que não são suas, limitar as vantagens remuneratórias e indenizatórias ilegítimas que pululam além da Constituição e, sobretudo, instaurar dispositivos de disciplina hierárquica mais eficientes que combatam o estado de anomia corporativa a que muitos procuradores acham que têm direito só porque usam o escudo discursivo do “combate à corrupção”.

Não foi senão com esse amparo retórico que, capitaneados vergonhosamente por Moro, os procuradores da Lava Jato produziram danos irreversíveis: condução coercitiva de Lula e sua escandalosa prisão posterior, quebra de empresas nacionais que vão ter seus lugares ocupados por estrangeiras, busca por recursos financeiros para propósitos pessoais com o prestígio da sua atuação e envolvimento político-partidário na forma de conluio corporativo. Tudo isso junto tem servido para consolidar o lugar comum de que o Direito sempre se prestou mesmo a render vassalagem aos estamentos elitistas em troca de bem estar material. 

O que o procurador geral pode fazer nesse quadro de conflitos internos em que sua autoridade legalmente não tem atribuição derrogatória direta dos atos dos demais procuradores? Difícil prever. Isso dependerá, além de arranjos internos bem costurados, de algumas variáveis políticas e econômicas, pois, na medida em que o Brasil não cresce, mergulhado no crescente desemprego e rondado pela recessão, tende-se a aumentar tanto a indignação popular contra as denúncias de corrupção quanto a receptividade a quem diz combatê-la, ainda que à custa de salários astronômicos, edifícios faraônicos com heliponto e regalias como licenças remuneradas até para estudarem no exterior,  além de diárias em bons hotéis e passagens aéreas.

Nessa fisionomia dos fatos, Aras tem contudo contra si um achaque funcional que seus pares mais novos podem usar, qual seja, aquele de ter se tornado beneficiário de uma das maiores imoralidades que o corporativismo do Ministério Público Federal patrocinou nos trabalhos constituintes em 1987-1988: conseguir que pudessem continuar advogando seus membros da ativa, o que fez com que muitos deles enriquecessem.

Essa bem sucedida manobra política foi mais ou menos como fazer um minotauro saltar da ficção para a realidade. Mas não é isso que alguns membros do MPF têm tentado construir ao criarem um procurador híbrido com poder não só de acusar, mas também de investigar como polícia e às vezes julgar como um juiz? Não foi essa mesma autonomia normativa que criou a regra constitucionalmente inexistente de lista tríplice? Não foi tanta autonomia a salvo de controle que permitiu que procuradores da Lava Jato acintosamente se jogassem nas teceduras políticas para ajudar a eleger um presidente desequilibrado que a todo instante fabrica ilegalidades e declarações vulgares?

Esse é, portanto, mais um capítulo de desdobramentos nebulosos das instituições públicas no Brasil, que estão se tornando um manicômio mitológico suportado pelo suor de um contribuinte cada vez mais desesperado sem saber o que de fato está acontecendo no “breu das tocas”.

Vitória da Conquista, 8 de setembro de 2019.

 


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